Jacques Fux — Escritor y novelista brasileiro judaico/Brazilian-Jewish-Writer and Novelist–“No lembro”/”I Don’t Remember” Fragmento de uma novela/Section of a Novel — ״Amnésia ou no?״/ “Amnesia or not?״

Jacques Fux

Jacques Fux é um autor brasileiro. Foi Visiting Scholar na Universidade de Harvard (2012–2014), realizou pós-doutorado na Universidade de Campinas, recebeu seu Ph.D. em literatura comparada pela UFMG e em língua, literatura e civilização francesas pela Universidade de Lille III. Possui mestrado em ciência da computação e bacharelado em matemática. Publicou quatro livros: Literatura e Matemática, premiado com o Prêmio Capes de Melhor Dissertação em Letras e Lingüística no Brasil; Antiterapias, sua primeira ficção, que recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura; Brochadas; e Meshugá: um romance sobre a loucura.

Tradutora:

Hillary Auker se formou recentemente na Boston University com mestrado em Estudos Latino-Americanos com foco em tradução e escrita brasileira contemporânea. Ela também tem um B.A. em linguística com foco nas línguas espanhola e portuguesa, e atualmente trabalha no Departamento de Línguas Românicas da Universidade de Harvard.

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Jacques Fux is a Brazilian author. He was a visiting scholar at Harvard University (2012–2014), performed post-doctoral studies at the University of Campinas, received his Ph.D. in comparative literature from UFMG and in French language, literature, and civilization from the University of Lille III. He has a Master’s degree in computer science and a Bachelor’s degree in mathematics. He has published four books: Literatura e matemática, awarded the Capes Prize for the Best Dissertation in Letters and Linguistics in Brazil; Antiterapias, his first fiction, which received the São Paulo Prize for Literature; Brochadas; and Meshugá: um romance sobre a loucura.

Translator:

Hillary Auker recently graduated from Boston University with an M.A. in Latin American Studies with a focus in translation and contemporary Brazilian writing. She also has a B.A. in linguistics with a focus in Spanish and Portuguese languages, and is currently working in the Romance Languages Department at Harvard University. 

Por: Jacques Fux and Raquel Matsushita. As coisas de que não me lembro, sou. Aletra Editora

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Por Lee Wan Xiang, Asymptote Magazine

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As coisas de que não me lembro, sou

Não me lembro do dia em que fui para escola pela primeira vez. Não me lembro de nenhuma mordida, nenhum soco, nenhuma briga que tive com algum colega. Nem me recordo de ter sido colega de ninguém no jardim de infância. Não me lembro das brincadeiras, dos sorrisos, das corridas e saltos mirabolantes. também não me lembro das lágrimas da minha mãe quando me deixou pela primeira vez nessa escola. Não me recordo do meu desespero, do meu pranto, dos soluços e da dor de barriga de tanto chorar. Não me lembro da professora, de sua tentativa em ludibriar, transformar e recriar um mundo fora do útero dos meus pais. também não me lembro do dia em que a escola passou a ser essencial e que os amigos se tornaram fundamentais. Não lembro da profunda atenção que meus pais davam ao meu irmão, da completa ausência de tios e avós na minha criação. Não me lembro (e gostaria muito de reviver) o carinho especial da minha bisavó. O amor que ela viveu com minha mãe e que revivia comigo. também não me lembro do seu desaparecimento. de ser capaz de ressignificar amor e ausência.

Não me lembro do primeiro grito de reprovação que recebi (nem do segundo, nem do terceiro). também não me lembro de ter aprendido algo com esse grito, com esse tapa, com o dedo em riste, com o olhar sério, com a voz grossa, com a necessidade de ser educado. Não me lembro dos professores da minha infância. devem ter sido sensíveis, carinhosos e tolos. Não me lembro de colorir, de encaixar brinquedos, de jogar objetos em rebeldia, mostrando que eu tinha vontade própria, de gritar, fazer pirraça e calar quando bem entendia. Não me lembro de começar a escrever, de repetir infindavelmente as letras do meu nome, de descobrir o som distinto e paradoxal da última letra do meu sobrenome. de entender a herança pesada da minha família e da minha cultura. Não lembro de descobrir o fabuloso mundo que se desvelava com a minha alfabetização. mundo imponderável para meus avós e bisavós. Não me recordo de trazer para aula o nome e a profissão dos meus pais, avós, tios. Não me lembro de construir a árvore genealógica de minha família, de escutar sobre a origem dos meus ancestrais e dos ancestrais de meus amigos. Não me lembro de me dar conta de que as professoras não eram judias, de que o mundo não era judeu, de que tatuagens com números estranhos nos braços dos avós não eram coisas normais, comuns e cotidianas. Não me lembro de estranhar o nome Auschwitz ou de compreender que genocídios não eram coisas cotidianas e banais. Não me lembro de associar as palavras barbárie, poesia e amor.

Não me lembro de ter aprendido o alfabeto. de repetir fastidiosamente o som das vogais e das consoantes. Não me recordo de ter aprendido o estranho som da letra h e nem de ter a percepção e consciência do w. Não me lembro de sentir nenhum desejo, cobiça e volúpia pelo outro. ele ainda fazia parte de mim. Não me lembro da disputa e da competição pelo olhar da professora. Por seu amor e admiração. Não me lembro das brigas, das desilusões, das primeiras angústias que só aconteciam na escola. Não me lembro quando diferenciei pela primeira vez meninos de meninas. Não me recordo do dia em que olhei para uma menina e algo diferente se passou em mim. talvez um brilho mais intenso no meu olhar. talvez uma quentura inaugural percorrendo meu corpo.

Não me lembro da primeira vez em que cheguei em casa desiludido. Não me lembro do dia em que descobri que todos os outros alunos da escola também eram especiais, e que uns eram muito mais especiais e queridos pelas professoras que os outros. e eu não era um dos queridinhos. Não me lembro do dia em que algum amigo preteriu outro a mim. também devo ter apagado completamente a lembrança do dia em que uma menina escolheu olhar para outro e fechar os olhos para minha perfeição. Não lembro de compreender que o mundo poderia ruir um dia. Que eu podia me abalar. Que eu poderia sofrer.

Também não lembro do dia em que descobri que meus pais não eram perfeitos. Que meu pai não era herói. Que minha mãe o havia escolhido antes de me gerar. e que eu era somente o segundo, ou o terceiro. Não me lembro do dia em que reparei algum defeito nos meus pais. Não me lembro do dia em que eu percebi o cheiro deles. um cheiro que já não era meu. Não me recordo do dia em que tive vergonha dos meus pais. em que concebi as terríveis diferenças e limitações do meu irmão. e também tive vergonha e me escondi. e passei a esconder as histórias da minha casa. também não me lembro do dia em que comecei a invejar as outras famílias, fantasiadas na minha mente como normais, e que desejei estar no corpo de outro. também não sei quanto tempo isso tudo durou. e quanto tempo depois descobri que nada disso tinha sentido. Que cada um tinha que viver com suas próprias dores. e com suas próprias invenções.

Não me recordo de aprender hebraico. Não me lembro de saber que hebraico não se falava correntemente no Brasil. também não me lembro do dia em que comecei a esquecer propositalmente essa língua. Nem de quando percebi que iídiche não se falava na rua. também não me lembro do dia em que entendi que as palavras em iídiche tinham uma conotação negativa. uma conotação de dor, de saudade da diáspora da minha família e de sentir no corpo e na fala o não pertencimento a lugar algum. uma tentativa inútil de preservação cultural. de recordar tempos e épocas em que meus antepassados tinham que fugir constantemente. também não me lembro quando entendi que falar essa língua era discriminar as pessoas e o país que acolheram minha família. também não sei se eles foram acolhidos, se foram felizes, se viveram em paz. Não me lembro de conversar com eles sobre isso. Nem sei como eles me passaram os valores culturais, históricos, familiares e dolorosos do judaísmo. também não lembro da primeira vez que comi guelfite fish.

Não me recordo da paixão pelas rezas matinais. Não me lembro o porquê cantava com tanto fervor e alegria versos em hebraico (que eu não entendia nada). Não me lembro da certeza que tinha em relação à existência de deus. do deus judeu. Não sei dizer quando eu rezava acreditando que deus me ouviria. e quando eu trapaceava, e era vil e mesquinho, almejando que deus me esquecesse naquele momento. Não me lembro do dia em que deus me abandonou e nem do dia em que eu o abandonei. eternamente. Não me lembro de tê-lo matado, e nem de quando ele matou meu tio. também não sei quem o fez. tampouco entendi a dor da minha família, da minha avó, dos meus primos. também não lembro do dia que compreendi que eu e meus pais éramos mortais.

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Não me lembro mais do dia em que passei a considerar o amor como sofrimento. Não me recordo o dia em que amei a primeira menina que não me queria. em que passei a me tornar melancólico. também não lembro da certeza que tinha que era o melhor e o mais inteligente de todos. Não me lembro de me tornar estúpido, arrogante e metido. de me retrair. de ficar na minha. de blasfemar. de achar que o mundo não era bom o suficiente para mim. também não me lembro do dia em que gostei de me ver inserido no mundo goy, e que passei a detestar e amar simultaneamente o judaísmo. A detestar fazer jejum e lembrar, constantemente, das infelicidades desse meu povo. A me encantar com a possibilidade de viver em um país forte, novo, briguento. também não me lembro do dia em que tive pela primeira vez ojeriza da sinagoga e de muitos de seus membros. Não lembro mais o motivo. Não me lembro mais da aversão que tive dos seus cheiros, roupas e mesquinharias.

Não lembro mais por que me achava diferente e melhor em meio ao mundo católico. também não me lembro da razão por me considerar um estranho e pior no mundo judeu. Não me lembro por que comecei a ler. Não me lembro mais do primeiro, do segundo e do terceiro livro que li. Não me lembro das sensações que senti. Não me lembro por que me achava especial por carregar um livro nas mãos. Não me lembro de gostar de ler nenhum livro para o colégio.

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By Lee Wan Xiang, Asymptote Magazine

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I Am What I Can’t Remember

I can’t remember the very first day I went to school. I can’t remember biting, punching, or fighting with classmates. I can’t remember being anyone’s classmate at all. I can’t remember the games, the smiles, the running, the spectacular somersaults. Nor can I remember how hurt I was when my mother left me alone at school for the first time. I can’t remember my despair, my weeping, my hiccups, and my stomach aches from crying so much. I can’t remember the teacher thinking she could play the part of my parents. I also can’t remember the day school became essential and that the friends became fundamental as well. I can’t remember the considerable attention that my parents paid to my brother, or the complete absence of uncles and grandparents in my upbringing. I can’t remember (and I would like very much to relive it), my great-grandmother’s special affection. The love that she shared with my mother and that she continued with me. I also can’t remember her becoming unable to show love and affection.

I can’t remember the first time I was scolded (nor the second, nor the third). I also can’t remember having learned something from this scolding, slap, pointed finger, serious look, or stern voice about the need to behave myself. I can’t remember the teachers from my childhood, but I imagine they should have been sensitive, loving, and silly. I can’t remember coloring, playing with toys, or throwing things in protest to demonstrate that I had my own will, or shouting, or being stubborn, only quieting when I wanted to. I can’t remember beginning to write, infinitely repeating the letters of my name, discovering the distinct and paradoxical sound of the last letter of my last name. Or understanding the heavy past of my family and my culture. I can’t remember discovering the bright, new world that unfolded with literacy. An unimaginable world for my grandparents and great-grandparents. I can’t remember coming to class and sharing the names and professions of my parents, grandparents, and uncles. I can’t remember making a family tree or hearing the origin of my ancestors and my friend’s ancestors. I can’t remember realizing that my teachers weren’t Jewish, that the world wasn’t Jewish, and that tattoos with strange numbers on your grandparents’ arms weren’t a normal, common, everyday thing. I can’t remember ever finding the name “Auschwitz” peculiar, or understanding that genocides weren’t normal, common, everyday topics either. I can’t remember connecting the words savagery, poetry, and love.

I can’t remember having learned the alphabet. Or carefully repeating the sounds of the vowels and consonants. I can’t remember having learned the strange sound of the letter h or having discovered the sensation of the w. I don’t remember feeling any coveted or sensual desire for another. That wasn’t yet a part of me. I can’t remember competing for a teacher’s attention. For her love and admiration. I can’t remember the fights, disappointments, the frustrations that only happened in school. I can’t remember the first time I saw a difference between boys and girls. I can’t remember the day that I looked at a girl and noticed something change in me. Like a more intense sparkle in my eye. Like an initial heat moving through my body.

I can’t remember the first time that I came home disappointed. I can’t remember the day that I discovered that all the other students were also special, and that the professors loved some of these special students more than the others. And I wasn’t special. I can’t remember the day one friend chose someone else over me. I should have completely erased from my memory the day that a girl chose to look for someone else, ignoring my perfection. I can’t remember understanding that the world could collapse one day. That I could be upset. That I could suffer.

I also can’t remember the day I discovered my parents weren’t perfect. That my dad wasn’t a hero. That my mother had chosen my father before she chose to conceive me. That I was only her second choice, or maybe her third. I can’t remember the day that I noticed my parents’ flaws. I can’t remember the day I first perceived their scents. A scent that wasn’t quite mine. I can’t remember the day I felt ashamed of my parents. When I could conceive the terrible differences and limitation of my brother. I was ashamed of being ashamed, and hid myself. I started to hide the stories of my house. I can’t remember the day I started being jealous of other families I thought to be normal, or the day I started wanting to be someone else. I don’t know how much time it took to create these fantasies. And how much time after their inception I discovered that they were impossible, and made no sense. When I discovered that everyone had to live his own pain and his own stories.

I can’t remember learning Hebrew. I can’t remember learning that Hebrew wasn’t spoken correctly in Brazil. I also can’t remember the day that I started to forget this language deliberately. Or when I perceived that Yiddish wasn’t spoken out in the streets. I can’t remember the day that I understood Yiddish words to have a negative connotation. A connotation of pain, of longing, of the diaspora of my family and feeling like neither my language nor my body could belong to one place or another. A useless attempt at cultural preservation. Of remembering times and epochs when my ancestors had been constantly on the run. Also, I can’t remember when I understood that to speak this language was to discriminate against the people and the country that had welcomed my family. I also can’t know if they truly felt welcome, if they were happy, if they lived in peace. I can’t remember conversing with them about it. Nor do I know how they passed on to me culture, history, family values, and the pain of Judaism. I also can’t remember the first time I ate gefilte fish.

I can’t remember the passion I had for the morning prayers. I can’t remember the reason I sang the Hebrew verses (of which I understood nothing) with such fervor and happiness. I can’t remember the certainty I had regarding the existence of God. Of the Jewish God. I can’t say that when I prayed, I believed that my God could hear me. I also can’t say for certain when I deceived Him, and when I was vile and petty, longing for God to forget me in those moments. I can’t remember the day that God abandoned me nor the day that I abandoned Him. Forever. I can’t remember having killed Him, or when He killed my uncle. I don’t know who did it. I can’t remember my family’s pain—my grandparents’ or my cousins’. I can’t remember the day I understood that my parents and I were just human.

 
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I can’t remember most of the day that I began to consider love to mean suffering. I can’t remember the day I first loved the first girl that didn’t love me back. When I started to turn melancholy. I can’t remember feeling certain that I was the best and most intelligent of anyone. I don’t remember feeling stupid, arrogant, and brazen. Being a wallflower. Hiding within myself. Cursing others. Finding out that the world was not good or good enough for me. I also can’t remember the day that I liked being embedded in the goy world, and that I started hating and loving Judaism simultaneously. When I started detesting fasting and remembering, constantly, the unhappiness of my people. I was enchanted by the possibility of living in a strong, new, aggressive country. I can’t remember the day that I had, for the first time, a grudge against the synagogue and many of its members. I can’t remember why anymore. I can’t remember the aversion I had to their scents, clothes, and stinginess.

I can’t remember why I found the Catholic world to be different and better. I can’t remember the reason for considering the Jewish world strange and worse. I can’t remember why I started to read. I no longer remember the first, second, or third book that I read. I can’t remember how they made me feel. I can’t remember why I found carrying a book around in my hands so special. I can’t remember liking any of the books I read for high school.

Translation by Stephen A. Sadow
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